Escrito por Natália Yukari Mano, facilitadora do Programa Apoiar
Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a criança e o (a) adolescente passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos e em peculiar condição de desenvolvimento. Diante disso, hoje são distinguidos como beneficiários de obrigações por parte da família, sociedade e Estado, devendo tais instituições propiciar condições para seu pleno desenvolvimento.
De acordo com o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (BRASIL, 2006), a relação com a família, qualquer que seja sua composição, é de extrema importância para a constituição de crianças e jovens como sujeitos, para o desenvolvimento afetivo e aquisições próprias de cada faixa etária.
Porém, quando nos deparamos com situações de grave risco à sua integridade física e/ou mental e nas quais tenham sido esgotados os recursos de manutenção em suas famílias, seu afastamento, como medida de proteção excepcional, se faz como intervenção necessária à sua proteção. Tal afastamento é efetivado pelo Conselho Tutelar respaldado pelo Ministério Público ou pela Vara da Infância e da Juventude.
Segundo Rizzini (2006), as principais causas que levam ao afastamento da criança e/ou adolescente de sua família são situações classificadas como violações dos direitos, que incluem violência intrafamiliar como abuso físico, negligência, abuso sexual, exploração pelo trabalho, entre outras.
Nestes casos, ocorre uma situação tão urgente quanto dilemática pela qual se questiona: quem cumprirá o papel familiar durante este período? Uma instituição de acolhimento institucional possui as características esperadas para realizar um acolhimento qualitativamente satisfatório, estimulando o desenvolvimento integral de quem foi acolhido?
Sobre esta questão, a opinião de França (2006) é que a colocação das crianças e dos jovens em espaços institucionais pode trazer danos tão sérios quanto a sua permanência em lares conflituosos. Para que, então, durante a intervenção da equipe técnica eles(as) não fiquem institucionalizados(as), entre os possíveis serviços a serem oferecidos, o Serviço de Acolhimento Familiar vem a ser uma alternativa bastante viável para os cuidados temporários.
Como funciona?
De acordo com o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (BRASIL, 2006), o Serviço de Acolhimento Familiar configura-se como um serviço de acolhimento provisório, até que seja viabilizada uma solução de caráter permanente – através da reintegração familiar ou, excepcionalmente, da adoção.
A equipe técnica (composta por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, operadores do direito) da instituição (governamental ou não-governamental) que oferece o serviço, em conjunto com o Poder Judiciário e demais equipamentos da rede de atendimento precisam avaliar a situação em que a criança ou adolescente foram afastadas de sua família e traçar estratégias para que possam retornar ao seu lar ou, na impossibilidade do retorno, encontrar outra família por meio de um processo de adoção. Deste modo, para que não fiquem institucionalizadas até que seja superada esta situação, famílias capacitadas e cadastradas nestas instituições disponibilizam sua casa e seus cuidados a estas crianças e/ou adolescentes, para que tenham atenção e afeto necessários para enfrentar esse sofrido momento de sua vida.
Que seja esclarecido: não se trata de um outro caminho para a adoção. Quando uma família resolve participar do Serviço de Acolhimento Familiar, é necessário que fique claro que a criança acolhida partirá algum dia e que, mesmo assim, é de suma importância o estabelecimento do vínculo afetivo para um desenvolvimento biopsicossocial satisfatório em um período de extremo sofrimento na vida desta criança ou adolescente. Por isso, o processo de capacitação e o acompanhamento pela equipe técnica se mostra primordial no acolhimento familiar.
Cabe enfatizar que mesmo com o retorno da criança para sua família de origem ou no processo de adoção, em muitos casos não há o rompimento do vínculo com a família que a acolheu; quando em comum acordo, a família acolhedora pode continuar em contato com a criança, realizando visitas e apoiando-a em suas necessidades. Assim, amplia-se a rede de proteção desta criança.
O funcionamento deste serviço é norteado pelas seguintes legislações: ECA (BRASIL, 1990); Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (BRASIL, 2006); Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009) e demais legislações locais vigentes. É necessário enfatizar que tais documentos orientam basicamente como o serviço em geral deve funcionar, necessitando serem programadas suas especificidades de acordo com a localidade onde o serviço está instalado.
Uma nova proposta: a ênfase nos vínculos afetivos
A proposta do acolhimento familiar está concatenada com os princípios de desinstitucionalização, preconizado em diversos estudos que enfocam a necessidade de manutenção e estabelecimento de vínculos sociais no desenvolvimento dos cuidados em saúde/saúde mental.
No caso da criança e do adolescente reconhece-se que, na maioria das situações, as instituições não possuem ambiente e recursos humanos adequados para prover os cuidados personalizados necessários que cada um deles tem como direito e necessidade de receber. Desse modo, espera-se que o Serviço de Acolhimento Familiar possa proporcionar condições para seu desenvolvimento de maneira menos danosa que o acolhimento institucional, superação de vivências de separação e violência, apropriação e (re)significação de sua história de vida e o fortalecimento de sua cidadania, autonomia e inserção social.
Assim, a proposta de desinstitucionalização que surgiu no campo da saúde mental com o movimento psiquiátrico, se estendeu para outras áreas de atuação, como a assistência social visando superar as práticas de exclusão e abandono em prol da convivência social. Como afirmam Costa e Rosseti-Ferreira (2009), foi necessário implantar uma nova proposta de acolhimento para crianças e adolescentes afastados de sua família natural que fosse de qualidade e mais eficaz que a antiga institucionalização.
E é neste cenário que o Serviço de Acolhimento Familiar, apesar de ser uma prática já há muito tempo exercida informalmente, se normatiza e se realiza como uma alternativa ao modelo geralmente pautado em relações formais e impessoais mantidas nas instituições, estabelecendo-se, dentro de uma família relações afetivas capazes de auxiliar as crianças afastadas de sua família de origem. A grande novidade está em se normatizar e regulamentar esta prática, pautado nos princípios do ECA (BRASIL, 1990), visando-se o bem-estar da criança/adolescente.
A partir deste norteamento, enfatizamos nosso olhar para um importante aspecto do desenvolvimento infantil: os vínculos afetivos. De acordo com Cavalcante e Jorge (2008), a palavra vínculo, do latim vinculum, significa algo que junta, une ou liga as pessoas: que há relação. Como afirma Pichon-Rivière (1982, p. 49) “o vínculo é sempre um vínculo social, mesmo sendo com um a pessoa só; através da relação com esta pessoa, repete-se uma história de vínculos determinados em um tempo e em espaços determinados”. Ou seja, o indivíduo tende a perceber e a interagir em novos relacionamentos da mesma maneira que vivenciou quando era criança.
Assim, se a criança vivenciou rejeição e abandono no vínculo original, arrasta a sentimento de insegurança por ele gerado como consequência, agindo de maneira insegura nos próximos vínculos, em especial naqueles que relembram a relação primária. Deste modo, o acolhimento familiar preconiza que novas relações são possíveis de serem estabelecidas, servindo como referência para o desenvolvimento desta criança.
É importante destacar que o afeto estimulado neste trabalho não deve causar a dependência da criança, mas sim sua autonomia. Segundo Gulassa et al., (2010), por meio dos vínculos a criança cria a oportunidade de se identificar e de se perceber; na autonomia, por sua vez, há um movimento no sentido de diferenciar-se, de perceber e querer ser diferente e construir sua própria história.
França (2006), em sua experiência com o acolhimento familiar, pontua alguns motivos que considera este serviço com resultados mais positivos que o acolhimento institucional, sendo alguns deles: o sofrimento que as crianças e adolescentes passam em espaços coletivos, onde tudo é partilhado e nada personalizado; ausência de referência afetiva; dificuldade de se confirmar sua identidade em espaços coletivos; dificuldade em ter alguém que a cuide de forma pessoal, levando-a a se sentir segura; entre outros motivos.
Um caminho em construção
Conforme pudemos demonstrar, o Serviço de Acolhimento Familiar como uma prática formal, amparada por normas e leis ainda se encontra em construção neste país. Como afirmam Costa e Rosseti-Ferreira (2009), implantar uma nova proposta de acolhimento para crianças e adolescentes cujos direitos foram violados, que seja de qualidade e mais eficaz que a institucionalização, exige tempo e mudanças de ordem conceitual, cultural, prática, legal e política.
Assim, entendemos que esta temática compõe um complexo campo sobre os diferentes aspectos que envolvem a infância e adolescência, sendo necessário o desenvolvimento de estudos, pesquisa, compartilhamento de experiências que possam fomentar políticas cada vez mais efetivas de proteção a este período da vida, e assegurando, acima de tudo, a dignidade e a progressiva autonomia da criança e do(a) adolescente.
Referências
BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Conselho Nacional de Assistência Social. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Brasília, DF: Conanda, 2009.
______. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990.
_______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília-DF: Conanda, 2006.
CAVALCANTE, C. M.; JORGE, M. S. B. Mãe é quem cria: o significado de uma maternidade substituta. Estudos em Psicologia, vol. 25, nº. 2, Campinas, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v25n2/a11v25n2.pdf>. Acesso em jul. 2012.
COSTA, N. R. A.; ROSSETI-FERREIRA, M. C. Acolhimento familiar: uma alternativa de proteção para crianças e adolescentes. Psicologia: reflexão e crítica, vol. 22, nº 1, São Paulo, 2009, p. 111-118.
FRANÇA, M. Famílias acolhedoras: preservando a convivência familiar e comunitária. São Paulo: Veras Editora, 2006.
GULASSA, M. L. C. R. (coord.). Imaginar para encontrar a realidade: reflexões e propostas para trabalho com jovens nos abrigos. São Paulo: Associação Fazendo História: NECA – Associação de Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, 2010. (Coleção Abrigos em Movimento).
PICHON-RIVÈRE, E. Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
RIZZINI, I. Reflexões sobre o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes no Brasil. Texto apresentado no V Fórum da Academia de Pediatria As transformações da família e da sociedade e seu impacto na infância e na juventude, em 2006. Disponível em: <http://www.sbp.com.br/show_item.cfm?id_categoria=74&id_detalhe=1354&tipo=D>. Acesso em dez 2012.