Crime acontece de forma imperceptível, embora muitas vezes o corpo reconheça e dê sinais de que algo não foi “legal”
Como identificar e reconhecer que estamos vivendo uma “violência amorosa”? Normalmente, ela aparece disfarçada de brincadeiras em situações banais ou encontros de família.
A renomada psicoterapeuta Aliette de Panafieu fez uma relação dos abusos mais frequentes dessa natureza, como:
Falar de alguém na terceira pessoa como se ele não estivesse presente, como se ele apenas fizesse parte da decoração do lugar;
Fazer uma piada, passar um trote ou criar uma brincadeira de gosto duvidoso, cujo sentido escapa à pessoa concernente.
Tanto nas famílias quanto nos ambientes de trabalho, é comum que uma grosseria sutil e mal-educada se instale de forma quase imperceptível.
Para perceber que estamos passando por uma situação de violência, o primeiro passo é reconhecer como o nosso corpo se comporta, afinal, o corpo fala! Devemos sempre nos perguntar qual emoção determinada situação nos causou.
Prestar atenção em si mesmo ajudará a identificar quando está ocorrendo um comportamento abusivo. Não importa se somos a vítima ou apenas a testemunha do cenário de maus-tratos, a emoção sentida nos ajudará a identificar se estamos vivenciando ou presenciando uma situação de abuso.
Identifiquei que algo não está bem. Como devo reagir a isso?
Críticas, discussões, comportamentos reativos, julgamentos, entre outros não servem para nada, pois o agressor normalmente age de forma impulsiva e muitas vezes não tem consciência do como está se comportando. O ideal é se manifestar de modo simples e claro ao agressor. É preciso falar o que você está sentindo a respeito do que aconteceu. Desta forma, ficará mais fácil a comunicação e o entendimento de que a situação desagradou.
E quando o abuso vem em forma de afeto?
Neste mês que combatemos a exploração e o abuso sexual infantil no Brasil, precisamos refletir sobre as práticas sutis existentes nas relações humanas, aquelas que são consideradas abusivas e podem prejudicar a saúde futura das crianças e dos adolescentes.
Para que haja um desenvolvimento pleno do indivíduo, é necessário que o ambiente seja seguro, para que este possa se manifestar livremente. Na maioria dos casos, os ambientes não são suficientemente seguros. Não falamos apenas de segurança física em relação ao espaço onde a pessoa mora, nem somente das condições da casa ou de exposições a agressões físicas e/ou verbais que podem acontecer, mas no sentido mais sutil, que é a liberdade do sujeito poder se expressar sem que haja julgamentos e críticas, onde se sente confortável para se expor.
Independente da classe ou contexto social, ainda encontramos formas de nos comunicar nas quais confundimos afeto com abuso. Muitas vezes, por querermos atender uma necessidade de proteção com uma criança e/ou um adolescente, invadimos seus espaços, atravessamos suas vontades e desejos.
Um exemplo simples é o de uma criança que está com um casaco e o cuidador diz: “Tire esse casaco! Está calor”. A criança, então, responde: “Mas eu não estou com calor”. Não satisfeito, o adulto insiste: “Tire. É para o seu bem”. Constatamos como é difícil se colocar no lugar do outro e validar o que o outro está sentindo. Esse cuidador atende a própria necessidade e não abre espaço para se conectar com o que essa criança está trazendo.
Outro caso hipotético é quando se utiliza o silêncio como punição, em uma situação que não está do jeito que uma pessoa quer, e se utiliza de ameaças para conseguir algo: “Se você não fizer isso, não terá aquilo”.
Também há a invalidação sobre os sentimentos: “Eu não acho que você esteja triste” ou “Eu não acho que você gosta de música, eu acho que você gosta de esporte”. Tudo isso é considerado uma violência diante daquilo que o outro manifesta ser ou querer, pois invalida e não acolhe.
Abrir espaço de conexão e estar presente para escutar o que o outro nos traz, permite que relações de confiança, afeto e parceria aconteçam. Afetamos e somos afetados a todo momento pelas situações, experiências e pessoas que encontramos. E isso pode ocorrer em um sentido positivo ou negativo.
Em um sentido positivo, o afeto pode ser atendido em forma de respeito, estar ali presente com a outra pessoa, onde existe cuidado e onde o limite de cada um são respeitados.
No caso negativo, como no exemplo do casaco, a forma de cuidado atravessa os limites da criança, não atendendo a necessidade dela estar bem com a vestimenta.
O que acontece nesta última situação? Essa criança vai aprendendo que seus sentimentos e pensamentos são inválidos, de tal forma que vai crescendo sempre com dúvidas a respeito daquilo que pensa ou sente. Isso a transforma em um adulto inseguro.
A não validação dos sentimentos dos outros implica em estarmos em relações em que sempre uma pessoa sairá por cima. Ou seja, terá uma única a atender suas próprias necessidades, o que significa que é uma relação de abuso. Por isso a importância de ajudarmos as crianças, desde pequenas a entenderem o que sentem em determinadas situações para que elas possam confiar em si mesmas e nos sinais que seus corpos trazem. Assim, quando estiverem diante de uma situação mais grave, de alguém colocar a mão em seu corpo, por exemplo, terão recursos internos para saber que algo ali não está certo.
Assim, prestar atenção em si mesmo ajudará a identificar quando está ocorrendo um comportamento abusivo. Não importa se somos a vítima ou apenas a testemunha do cenário de maus-tratos, a emoção do que sentimos nos ajudará a identificar se estamos vivenciando ou presenciando uma situação de abuso.
Precisamos incentivar as crianças a terem autonomia, entenderem o que sentem e os limites do corpo. É necessário que elas identifiquem quando algo está errado, seja em expressão corporal ou verbal.
Afinal, afeto não pode ser confundido com abuso. Afeto é amor.
“O amor é o que o amor faz, e é nossa responsabilidade dar amor às crianças. Quando as amamos, reconhecemos com nossas próprias ações que elas não são propriedades, que têm direitos, os quais nós respeitamos e garantimos.
Sem justiça, não pode haver amor”. Bell Hooks, Tudo sobre o Amor
Autora: Ariela Kalili Psicóloga, educadora, aprimorada em Desenvolvimento Humano para infância e adolescência pelo HCFMUSP e pós-graduanda em Educação Sistêmica pela Pedagogia Para Liberdade. Formadora de Educadores no Núcleo Espiral.