Texto escrito por Katyanne Segalla, facilitadora do programa Retocare
Eu fui convidada a trabalhar com os jovens em liberdade assistida logo que entrei como facilitadora no Núcleo Espiral, em 2016. A liberdade assistida consiste no acompanhamento por parte de um técnico junto a um adolescente que tenha cometido uma infração, sem privá-lo de sua liberdade nem de seu convívio com a escola, a comunidade e sua família.
O estatuto da criança e do adolescente (ECA) considera que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos que cometem crime ou contravenção penal. A estes jovens não podem ser perpetradas penas, e sim medidas socioeducativas. Em seu artigo 112, o ECA enumera as várias medidas que a autoridade competente poderia aplicar ao adolescente após verificada a prática do ato infracional, antes de se decidir pela drástica medida de privação de liberdade por internação em estabelecimento educacional: i) advertência; ii) obrigação de reparar o dano; iii) prestação de serviço à comunidade; iv) liberdade assistida; e v) inserção em regime de semiliberdade, além de outras medidas que visem ao acompanhamento do infrator na família, escola, comunidade, serviços de saúde etc. (MARREIROS et al, 2014 p.34).
Eu estava com muita energia, aberta para tudo e disposta a ser uma boa multiplicadora, mas não imaginava o quanto uma mulher (e jovem) branca e de classe média teria a aprender com esses adolescentes.
A verdade é que se você não mora na periferia, por maior proximidade que você tenha com o assunto ou com uma pessoa ou outra de lá, você nunca está preparado para lidar com algumas questões. E eis o porquê: por mais que eu tivesse aulas sobre psicologia social e sobre como as pessoas marginalizadas são vítimas; por mais que eu tente diariamente ser uma pessoa que desconstrói pensamentos (ou pelo menos tenta), meu imaginário ainda era em grande parte formado pela mídia e por uma família que repetia esses pensamentos, em um comportamento típico, como demonstrado a seguir:
Uma vez que sua conduta seria marcada apenas pela violência, todas as suas ações tendem a ser analisadas sob este prisma, de forma a confirmar um status presumido de incivilidade, concebido a partir de repertórios culturais rígidos, que encapsulam a existência desses jovens no plano mais óbvio da força, do egoísmo e da ruptura social (LYRA, 2014 p.13).
Então lá fui eu para o primeiro encontro, imaginando garotos mal-encarados, desrespeitosos e debochados. Para aumentar minha fantasia, aqui no Espiral nós não perguntamos qual delito cada menino cometeu. E mais tarde eu fui entender quão importante é isso. Mas naquele primeiro momento, só pensei: pode ser um menino sem sorte pego com um punhado de drogas, ou um que assassinou alguém!
E eis o que encontrei nos dois anos trabalhando com esses meninos que cumpriam medida socioeducativa:
– maioria negros, mas nem todos;
– maioria com uma história de vida muito sofrida, mas nem todos;
– meninos imensamente respeitosos;
– alguns já calejados da vida levada, mas outros muito assustados;
– alguns que ainda carregavam um brilho nos olhos, e outros, minoria, que já não tinham mais nada a perder.
E essa foi uma das coisas que eu aprendi. E é aqui que entra a importância de não saber quais eram as infrações cometidas. Naquela uma hora semanal, eles eram apenas garotos normais para mim. Naquela única hora, eles eram tratados com dignidade e respeito, e me tratavam da mesma forma. E eu não fazia ideia, olhando para cada um, que tipo de infração eles poderiam ter cometido.
Era um desafio levar atividades para eles! O que pode chamar a atenção desses meninos? Será mesmo que uma simples atividade de estourar bexigas vai ser levada a sério? As atividades do Espiral, sempre muito lúdicas ou com abordagens corporais pareciam ser legais para as crianças dos CCAs (Centro para Crianças e Adolescentes), mas e para esses adolescentes? E essa foi outra lição aprendida por mim. Essas atividades traziam leveza para o encontro. Era talvez o único momento em que eles tinham espaço para entrar em contato com os traumas vividos sem ter que falar abertamente (a não ser que eles quisessem) sobre aquilo.
Foi quando eu realmente entendi que o Método Espiral (método base utilizado pelo Núcleo Espiral, composto por cinco pilares: abordagem simbólica junguiana, paradigma da resiliência, linguagem corporal, trabalho vivencial e encontros grupais), não tem idade. E não só isso, mas o alcance que ele tem. Isso foi sendo visto através das atividades, com um jovem que ficou em silêncio durante um ano e depois agradeceu, dizendo que foi “uma satisfação estar ali”. Ou com outro jovem que conseguiu se vincular às facilitadoras e falou “nos encontramos por aí. Se quiserem me ver, estarei jogando bolinha no semáforo da Faria Lima”.
Na maioria dos casos a forma mais clara de ver o desenvolvimento deles é através dos desenhos, que são aplicados antes do início das atividades (sendo 10 ao todo) e ao final. Porém, através dos encontros também pode-se perceber algumas mudanças de atitudes.
Para exemplificar tudo isso, apresento o caso de Paulo (nome fictício), 15 anos, adolescente atendido no segundo semestre de 2017. Paulo foi o único adolescente a comparecer em todas as atividades daquele semestre (semestre que contou com apenas três jovens).
De acordo com sua fala e, talvez por causa da sua idade, aparentava uma fluidez que o prejudicava, já que ele ficava sem um modelo de exemplo ou inspiração. Isso fazia com que ele ficasse vulnerável e sujeito a qualquer tipo de influência, independente se boa ou ruim. De acordo com Levisky (2000), os jovens são vulneráveis e suscetíveis às influências do meio social, portanto, buscam fora da família aspectos que desejam incorporar à sua realidade pessoal. Segundo o autor, “os adolescentes, em busca de sua identidade adulta, reproduzem, imitam ou estabelecem conluios consciente e inconsciente, como forma de contestação e de autoafirmação” (LEVISKY, 2000 p.20).
Apesar de sempre iniciar os encontros mais reservado e em silêncio, ao longo das atividades ia se sentindo mais à vontade e trazendo reflexões e exemplos de sua vida, entrando em contato com sentimentos e pensando em novas formas de reagir frente a dificuldades da vida. Este é um exemplo dos casos que são minoria: Paulo tinha uma família (os pais eram separados, mas tinha um bom contato com ambos) e boas lembranças em relação à infância. Portanto, é possível compreender aqui que a causa de infrações nem sempre é uma família desestruturada como as pessoas dizem. O ser humano é um ser biopsicossocial e, o adolescente traz como característica, de acordo com Levisky (2000), uma tendência maior a descarregar impulsos agressivos diretamente, ou seja, eles pensam nas consequências de suas ações após elas terem sido realizadas. Além disso, o autor assinala a influência de um meio externo gerador de violência:
Nosso meio psicossocial está agravado pelas discrepâncias sócio-econômico-culturais, elevado índice de natalidade, de miserabilidade, de mortalidade, elementos facilitadores de um clima de instabilidade social e propulsora de várias violências: estrutural, familiar, social, ética, psicológica prejudicando enormemente a qualidade das inter-relações humanas. Este clima incrementa um círculo vicioso gerador de mais violência (LEVISKY, 2000. p.33).
Dando prosseguimento às atividades, destaco a que considero de maior importância para compreender as possíveis mudanças: foram levadas ataduras gessadas para fazer uma máscara e depois pintá-la. Um adolescente que passou por tantos traumas (entre eles a internação na Fundação Casa), costuma ser muito desconfiado e tem dificuldades em confiar no outro. Tanto que um dos adolescentes que estava presente no dia não quis participar. Paulo, porém, topou tão positivamente a atividade, que chegou a dormir enquanto eu e minha dupla colocávamos as ataduras em seu rosto.
Após a secagem da máscara, ele foi convidado a pintá-la, e as cores escolhidas também merecem ser destacadas. A parte de fora da máscara foi pintada de azul na região da testa, vermelho na região da bochecha e laranja na região do queixo. A cor azul poderia representar uma tristeza, enquanto as cores vermelho e laranja representam agressividade. Já na parte de dentro, apesar da atadura gessada ser branca, Paulo pintou com muito cuidado com a tinta guache branca. Enquanto a parte externa da máscara, que significa o contato com o mundo, foi feita com cores de tristeza e agressividade, a parte interna, que apresenta seu mundo interior, está totalmente branca, o que interpretamos como um quadro em branco, como uma tela ainda por ser pintada. Nesse sentido, podemos lembrar da fluidez de Paulo, de como ele ainda está em fase de desenvolvimento, descobrindo quem ele é.
E, para finalizar, os desenhos inicial e final foram comparados (abaixo). Neles é possível perceber como Paulo ainda está quase transparente em relação aos outros itens do desenho, mas como ele já está maior do que era, significando que está mais fortalecido.
Uma afirmação normal dita no Núcleo Espiral é que nosso trabalho é de formiguinha. As mudanças são com frequência sutis ou, em muitos dos casos, nem mesmo as veremos, pois são plantadas sementes em cada um desses jovens cujos frutos aparecerão mais adiante. E essa semente é a da resiliência, termo tão citado em casos de pessoas em vulnerabilidade social e que é plenamente exercitada entre nós do Espiral, também.
Aprendemos que cada melhora, em qualquer aspecto, tem que ser celebrada, pois comprovamos que esses meninos, chamados de “perdidos” pela população, ainda carregam a esperança dentro de si. Temos apenas que oferecer as ferramentas corretas.
Referências Bibliográficas:
LEVISKY, D.L. (Org). Adolescência e violência: consequências da realidade brasileira. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
LYRA, D. Pertencimento e identidade entre os garotos armados do morro. In: ALMEIDA, M.I.M.; LIMA, F.D.B. (ORG). Subjetividades, violência e trajetórias juvenis. 1ªed. Rio de Janeiro: Gramma, 2014.
MARREIROS, J.C.; MOTA, M.L.; NOGUEIRA, S.E.; SILVA, A.L.F.; SOARES, J.D.L. Oficinas Temáticas com adolescentes autores de atos infracionais visando promocação de saúde: relato de caso; In: ALMEIDA, M.I.M.; LIMA, F.D.B. (ORG). Subjetividades, violência e trajetórias juvenis. 1ªed. Rio de Janeiro: Gramma, 2014.
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