Artigo escrito originalmente para fins acadêmicos e adaptado para esta plataforma por Dea Berttran e Maria Rios Lima, facilitadora do programa Apoiar do Núcleo Espiral.
Neste semestre, o 7º Encontro de Autocuidado e Prevenção da Violência traz como tema o filme Moana, com o título “Siga seu coração e cumpra sua missão”. A partir disso, propomos com este texto a seguinte discussão: como um filme é capaz de gerar ou de transformar subjetividades? De que maneira a imagem da Moana como uma mulher forte, protagonista, que não está à espera do príncipe encantado para ser feliz, pode ajudar as pessoas, homens ou mulheres, a lidarem melhor com a questão da equidade entre os gêneros, por um mundo com menos violência?
Cada filme ou produção do cinema reflete, de alguma forma, os valores, saberes e subjetividades vigentes no momento de sua produção (DUARTE, 2002)[1]. E, em movimento contrário, os filmes produzem subjetividades: os espectadores são afetados em sua constituição psíquica pelos filmes aos quais assistem.
Um dos aspectos importantes para se pensar, que são tanto refletidos nos filmes, quanto produzidos e reforçados por eles, é o dos papéis e representações de gênero. Quando falamos em gênero, falamos não somente do “feminino” e “masculino”, mas dos papéis e lugares designados para os personagens homens e mulheres, pressupondo hierarquias, subordinações e padrões convencionais que podem não respeitar as particularidades étnicas, culturais e sociais (AHMED & WAHAB, 2013)[2].
Quando pensamos em filmes infantis, por conta da pouca idade dos espectadores, esses aspectos assumem uma relevância ainda maior. Ao representarem, por meio das cenas e falas dos personagens, o desejável e o indesejável em determinada sociedade, os produtores cinematográficos produzem e legitimam representações sociais, enquanto os consumidores, em sua maioria crianças, passam a reproduzir, na prática, os comportamentos das personagens de que tanto gostam, além de interiorizarem estas imagens em suas identidades.
Atentar-se para as reproduções midiáticas é, portanto, uma tarefa importante, pois é a partir de um novo olhar que determinados valores serão veiculados e questionados, propondo mudanças às questões de gênero, suas estereotipias, papeis rígidos polarizados nas categorias de “homem” e “mulher”, inseridos em crenças naturalizantes desses ideais (MONTEIRO; ZANELLO, 2014)[3].
PERFORMANCES DE GÊNERO E OS DESENHOS DE PRINCESAS
Dentre as produções infantis, uma personagem assume um papel de destaque ao longo das décadas, presente em muitas produções: o da princesa. Vários autores analisaram a sua evolução por meio das concepções da Disney, dentre eles Maia e Maia (2015)[4], que apontaram como a abordagem das representações sociais e, principalmente, das construções de gênero, foi sofrendo modificações ao longo da sua trajetória histórica dentro das obras cinematográficas de animação que marcaram o século XX e o início do século XXI.
Ferreira (2015)[5] classifica as personagens-princesas em três gerações, a começar pela primeira delas, considerada por ele como “clássica”, com filmes produzidos pelos estúdios Disney entre os anos 1937 e 1959, tendo como representantes “Branca de Neve”, “Cinderela” e “A bela adormecida”. São figuras femininas pouco participativas nas tramas, embora as histórias carreguem nos títulos os seus nomes. Elas são claramente escolhidas por seus futuros maridos que se apaixonam, antes de tudo, pelos atributos considerados imprescindíveis em uma mulher desse período, e que as princesas apresentam, sejam de beleza ou de dotes como saber cuidar da casa e saber cozinhar.
São histórias de princesas à espera do príncipe encantado que lhes vai salvar. A mulher é bela, indefesa e submissa, cujo único objetivo é casar e ter filhos. Com essas influências, a menina aprende desde cedo que deve ser frágil: para Ferreira (2015), em 1937, quando A Branca de Neve foi lançado, o principal papel social da mulher era ser uma boa mãe, esposa e dona de casa. Nesta primeira geração das princesas Disney, essa ideia do sistema patriarcal é reproduzida de maneira repetitiva: as jovens precisavam do príncipe para existirem enquanto princesas, para atingirem o ideal do que seria ser mulher no século XIX. As mulheres precisavam de um homem que as salvasse e protegesse do mal, sempre causado por outras mulheres, como madrastas ou bruxas.
A segunda geração de princesas seria a das princesas rebeldes, retratadas nas produções entre 1989 e 1998. Considerando-se o fato de que no período compreendido entre estas duas gerações se deu o renascimento do feminismo no início dos anos 70, as mulheres ocidentais conquistaram direitos legais e de controle de reprodução, alcançaram a educação superior, entraram para o mundo dos negócios e das profissões liberais e derrubaram crenças antigas e respeitadas quanto ao seu papel social. (WOLF, 1992, p.11, apud FERREIRA, 2005). Desta forma, ocorre uma mudança substancial nas características das novas princesas, além da inserção de heroínas que remetiam a diversas etnias: Ariel, Bela, Jasmine, Pocahontas e Mulan. São princesas que lutam por seus ideais, são corajosas e rompem com alguns padrões (desobedecer ao pai, querer conhecer o mundo e estudar, escolher seu próprio destino, lutar por seu país), embora acabem por sacrificar outras áreas da sua vida social em nome da realização amorosa.
A terceira geração de princesas – as princesas contemporâneas e feministas, são aquelas que surgiram a partir de 2009. As princesas contemporâneas mostram a nova realidade das mulheres do século XXI. São elas Tiana, Rapunzel, Merida, Elsa, Anna e, mais recentemente, Moana, protagonistas de filmes mais feministas, com mulheres que sonham com bem mais do que um casamento. Interessante perceber que, nesta fase, os príncipes, ao contrário dos fortes e valentes de outrora, aparecem altamente despotencializados (fenômeno a ser analisado, questionado e transformado, e que também não nos leva à equidade de gênero). Tiana não sonha com um príncipe encantado ou um castelo, mas sim em ter o seu próprio restaurante, conquistado com árduo trabalho. Por mais que haja a presença de um príncipe e que os dois se casem no final, esta parte da história não parece ser o mais importante. Em Enrolados (2010), Rapunzel é uma jovem que, no final, acaba salvando o príncipe. Merida, protagonista de Valente, tem personalidade forte e rebelde, sendo considerada a primeira princesa, de fato, feminista. A princesa, para desgosto de sua mãe, é uma jovem independente, que em plena Era Medieval, questiona o fato de ter que se casar com um homem pré-determinado. Ela decide então, lutar pela sua independência. O foco da história recai sobre a relação entre duas mulheres, Merida e sua mãe, não havendo nenhuma relação amorosa da princesa.
Elsa, a protagonista de Frozen, uma aventura congelante, é, em resumo, uma mulher que busca conhecer e explorar seu poder. Sua maior fraqueza era justamente a falta de controle deste dom, que seus pais a mandaram esconder na tentativa de fazê-lo desaparecer. Frozen foi aclamado pelo público por questionar estereótipos reforçados tantos anos pela própria Disney: o amor que salva não é mais o de homem e mulher, e sim, como em Valente, o amor familiar. Frozen é um filme com duas protagonistas fortes, independentes e muito diferentes, que deixa claro que as meninas têm opção de escolha. Não há nada de errado em sonhar com um casamento, mas também não há nada de errado em ficar solteira. (FERREIRA, 2015)
Moana é a princesa que encarna mais fortemente o ideal feminista. Filha do líder da tribo da ilha de Motonui, na Polinésia, Moana é, desde criança, corajosa e fascinada pelo mar. Em sua tribo, é proibido ultrapassar os recifes em direção ao alto-mar. Impulsionada pelas lendas e histórias contadas por sua avó, uma mulher muito sábia que guarda a história da ilha, Moana, a detentora do coração de Te Fiti (uma figura mística que teve seu coração roubado por Maui, um semi-Deus), a escolhida do Oceano, Moana sai em uma aventura proibida para restaurar a vida e a fertilidade no planeta. Contra as ordens de seu pai, parte em um barco para encontrar Maui e, com ele, devolver o coração de Te Fiti. Maui é um semi Deus egocêntrico e vaidoso. Com sua determinação, Moana o leva consigo na aventura, fazendo com que ele se submeta a ela. Maiu, excelente navegador, ensina as técnicas de navegação à jovem Moana. Juntos, vencem desafios, dentre eles a perigosa Te kã, figura mística que Moana descobre ser Te Fiti destituída de seu coração. Surge então uma amizade entre os dois, que, em nenhum momento assume caráter romântico.
Há vários elementos interessantes a serem analisados nesta história. Moana, que não encarna o ideal de beleza ocidental, e não se preocupa com isso, é forte, independente, corajosa. Desafia os padrões vigentes em sua tribo. As personagens femininas se ajudam e se apoiam. A solidariedade entre mulheres já aparecera tanto em Valente quanto em Frozen. Nota-se que as heroínas das animações mais recentes são protagonistas efetivas de suas histórias, são altivas, questionam, são complexas, têm sentimentos conflitantes, enfim, possuem uma natureza genuinamente humana, e os personagens masculinos, por sua vez, perderam o estereótipo de homem perfeito com causas nobres a defender e a responsabilidade pelo bem-estar e felicidade da princesa (MAIA; MAIA, 2015).
Inspirados em Moana, a equipe do programa Apoiar do Núcleo Espiral propôs no encontro de famílias no CCA Projeto Vida que cada participante confeccionasse com argila seu “coração de Te Fiti”, amuleto que tanto mobilizou homens e mulheres a falarem de seus propósitos de vida, e especialmente sobre a força e o protagonismo feminino, culminando em uma troca muito emocionada – e emocionante – sobre a violência contra a mulher. E que venha o encontro, para que todas essas reflexões ultrapassem os recifes de coral, e cheguem a um número cada vez maior de protagonistas em potencial.
Bibliografia
[1] DUARTE, R. Cinema & educação: refletindo sobre cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
[2] AHMED, S.; WAHAB, J. A. Animation and socialization process: gender role portrayal on cartoon network. Asian Social Science, vol. 10, no. 3, 2014, p. 44-53.
[3] MONTEIRO, C; ZANELLO, V. Tecnologias de gênero e discurso amoroso nos filmes de animação da Disney. Revista Feminismos, vol 2, n3 2014, p. 36-44.
[4] MAIA, R. S. ; MAIA, C. J. Os contos de fadas no cinema: uma perspectiva das construções de gênero, sua história e transformação. Revista Ágora, 22, 2015 p. 258-274.
[5] FERREIRA, J. S. Valente e Frozen: a nova princesa da Disney. Monografia Conclusão de Curso. Faculdade de Comunicação Social e Jornalismo UERJ, 2015.
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