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Do Lúdico ao Simbólico: A escolha de personagem no grupo com crianças


Texto por Daniela de Oliveira Moreira Bueno, facilitadora do Projeto RETOCARE do Núcleo Espiral


O trabalho realizado no Núcleo Espiral tem um olhar prospectivo em relação à capacidade criativa e transformadora das crianças, visando desenvolver suas potencialidades. Ele ocorre sob o sustento de cinco pilares que conduzem todas as atividades, sendo eles: encontros grupais; vivências lúdicas; corpo; símbolo e resiliência, que compõem o Método Espiral.

O RETOCARE é o programa responsável pelos grupos conduzidos com crianças em CCA’s (Centro de Crianças e Adolescentes), no qual oferece oficinas socioeducativas a um grupo determinado de crianças dentro dessas instituições, sendo assim, parte fundamental deste trabalho se dá através de um contexto lúdico, onde essas crianças experimentam novas vivências através das atividades, promovendo um autoconhecimento corporal e ressignificando experiências negativas anteriores através das atividades propostas, com o intuito final de promover as habilidades de resiliência.

Nesse universo do contexto lúdico, cada grupo conduzido pelo RETOCARE escolhe um tema que será vivenciado no decorrer do ciclo semestral e, dentro deste tema, cada criança escolhe um personagem. A cada encontro é realizado um “ritual de entrada e de saída”, onde o momento no qual a criança adentra a sala “transforma-se” no personagem escolhido, e ao final, despede-se “destransformando-se”.

O aspecto lúdico nos encontros propicia que os facilitadores utilizem da mesma linguagem que a criança nesta interação através do brincar. Mas por que esse contexto lúdico é tão importante?

No contexto lúdico o grupo como um todo experimenta as atividades de forma divertida e prazerosa; a criança em si, que traz consigo uma linguagem natural no brincar, comunica e exprime as fantasias inconscientes que as perpetuam. Fordham (1994) traz que esse brincar explora e expressa os estados emocionais de quem o faz, além de se fazer um espaço propício para acessar e elaborar os conteúdos inconscientes.

Aqueles que estão imersos na brincadeira, experimentam, trocam, tentam, competem, cooperam, ganham, perdem, riem, choram, se frustram, se alegram. Dentro do espaço livre, seguro e protegido que o RETOCARE constrói juntamente com essa criança, é instaurada uma conexão e vínculo entre as facilitadoras e o grupo. Através disso, abre-se espaço para a expressão do mundo intrapessoal delas, permitindo que as crianças expressem sentimentos e/ou pensamentos muitas vezes “inaceitáveis” em outros contextos. Portanto, esse brincar explora de forma fluida os aspectos pertencentes a essas crianças. Neste ambiente, há a possibilidade de entrar em contato com suas próprias habilidades, limites e descobrir suas potencialidades.

Diante disso, surge uma reflexão: Por que escolher um personagem? Qual sua relevância para os encontros?

Pode-se inferir que a partir do momento em que a criança transforma-se em seu personagem, tem a possibilidade de assumir uma nova identidade, sendo assim um terreno fértil para vivências dramáticas. Através da incorporação desses personagens as crianças mergulham em fantasias, e com espontaneidade e imaginação, permitem que diversos conteúdos entrem em cena, pois possivelmente esses conteúdos não seriam acessados facilmente através da fala. Dessa forma, a criança expressa medo, raiva, ódio, caos, tristeza, insegurança, alegria, entre outros sentimentos, vivenciando diversos estados de emoções em sua plenitude, sem precisamente ter que nomeá-los, o que poderia gerar muita angústia para ela. Viver todas essas emoções em sua completude é uma experiência reintegradora. Mesmo não refletindo as dramaturgias de forma racional, aquilo reflete em seu interior, em seu self.

A criança vai construindo sua identidade a partir de um processo constante de integração simbólica, onde corpo e psique se entrelaçam continuamente através do que os une, o símbolo. Segundo Neumann (1995), “o mundo da criança é repleto de apercepções mitológicas capazes de proporcionar amparo e acolhida”. Desse modo, o símbolo, sendo a ponte que liga corpo e mente, revela-se nesse ambiente por meio da escolha do personagem. Pode-se compreender então a escolha do personagem, acima de tudo, como uma representação simbólica. Uma escolha significativa, onde os personagens escolhidos muitas vezes revelam características que, consciente ou inconscientemente, ligam-se a aspectos da personalidade das crianças do grupo, bem como a temática em si, que também revela aspectos inerentes a uma “personalidade” do grupo como um todo.

O processo de desenvolvimento da personalidade na visão da psicologia analítica concebe que no início da vida a personalidade é uma unidade indiferenciada, constituindo uma totalidade. Iniciado o processo de desenvolvimento, essa totalidade separa-se e diferencia-se em várias partes; a partir daí nasce a consciência do ego e o restante da totalidade passa a residir no inconsciente. O que a consciência do ego rejeita, torna-se sombra, e o que ela positivamente aceita, aquilo com que ela se identifica, integra-se a persona.

Para ilustrar esses apontamentos, será observada a escolha do personagem de uma criança em específico, no qual será utilizado o nome fictício de “João”, onde a escolha de seu personagem foi o Super-Homem, personagem esse que representa um homem com poderes extraordinários, reconhecido como: “mais rápido que uma bala, mais poderoso do que uma locomotiva, capaz de saltar prédios altos em um único salto”, exibindo habilidade de super força, super velocidade, invulnerabilidade, entre outros. Em contrapartida, a criança que o escolhera era um criança que aparentava inatividade, passava muitos encontros apenas deitado observando, demonstrando muitas vezes apatia, faltando-lhe força, energia e motivação para efetuar as atividades propostas pelas facilitadoras.

Dessa forma, o que será que há contido na escolha desse personagem em específico?

Primeiramente é possível inferir alguns aspectos da persona de João que foram identificados na personalidade do Super-Homem. O herói segue estritamente seus códigos morais, onde em suas missões demonstra um sério compromisso em operar dentro das leis. João, no decorrer dos encontros, frequentemente demonstrava importar-se cada vez mais com as regras estabelecidas pelo grupo e que essas fossem cumpridas, muitas vezes denunciando os colegas que não as respeitavam. Também é possível observar, pelo fato de Super-Homem ter sido enviado ainda bebê para o planeta Terra, que ele demonstra um sentimento de solidão diversas vezes, apesar de ter sido adotado pela família Kent e feito novos amigos. Correspondendo ao comportamento de João, muitas vezes este isolava-se dos colegas, não se integrando ao grupo.

Contudo, faz-se necessário dar um olhar mais cauteloso para os aspectos intrínsecos ao Super-Homem, a respeito de suas Super-Habilidades (Força, velocidade), concomitantes a aspectos inerentes a sombra do garoto, pois, além dos conteúdos que foram rejeitados pelo ego que estão contidos nessa sombra, também estão dotadas suas potencialidades. Portanto, é possível inferir que a simbologia contida na escolha desse personagem em específico, evidencia a potencialidade de uma força vital que se encontrava submersa, uma vez que demonstrava-se apático em diversos momentos.

Aqui é possível evidenciar o motivo do simbolismo ser um dos pilares que rege a estrutura desse trabalho. O símbolo, como já dito anteriormente, tem uma importante função na estruturação da identidade da criança, pois é a partir deste que será feita a ponte do que ocorre em seu universo psíquico e em seu corpo, através da vivência simbólica e corporal das atividades. Com isso, além do acolhimento e suporte dado nos encontros, o garoto teve nas atividades do Espiral um terreno favorável para um desenvolvimento egóico. Foi observado pelas facilitadoras que acompanharam este grupo, que ao final dos encontros João apresentava-se mais ativo e alegre, integrando-se e interagindo cada vez mais ao restante do grupo.

Em virtude do que foi mencionado, o trabalho realizado com as crianças pelo RETOCARE exibe um diferencial que o torna-o um projeto ímpar, uma vez que privilegia e explora: o trabalho em grupo, proporcionando trocas e aprendizagens na relação com os colegas e o contexto lúdico e simbólico, propiciando um ambiente favorável para que se possa se entrar em contato com seus limites e desenvolver suas potencialidades. Além disso, permite que as crianças desenvolvam sua autonomia, percepção corporal e competências sociais, alcançando assim o objetivo maior de desenvolver a resiliência.

“A fantasia humana […] é uma forma antecipatória e preparatória de adaptação à vida. É a fonte de tudo que caracteriza o homem como homem. A fantasia de um mundo transformado é o primeiro estágio de sua transformação real, […] O mundo da arte, o mundo da cultura e da civilização, como todas as suas invenções, inclusive a invenção da ciência, brotou da fantasia criativa do homem. “(NEUMANN, 1991. p. 117).

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