Você, como adulto responsável, está verdadeiramente ouvindo as crianças ao seu redor?
É muito importante que as crianças tenham espaço para poderem decidir coisas simples do cotidiano, lógico, dentro das possibilidades cabíveis em cada situação e de forma que não as prejudiquem de alguma maneira. É igualmente necessário incentivá-las a demonstrarem suas opiniões e desejos, a fim de se perceberem enquanto indivíduos únicos, com seus próprios saberes e quereres. Mesmo estando em fase de formação e desenvolvimento, e necessitarem, muitas vezes, de direcionamento e segurança, é fundamental que se sintam capazes – base sólida da autoestima e autoconfiança, construída quando amparadas e motivadas adequadamente.
Quando crianças se enxergam protagonistas, conseguem, com a maturação, fazer escolhas por si, mesmo na ausência dos pais ou figuras de referência. O equilíbrio é fundamental para que a criança não se sinta desamparada, mas tenha no adulto uma fonte segura e de proteção.
Não é incomum encontrarmos adultos que apresentam dificuldade em tomada de decisões do dia a dia, pela ausência de uma autopercepção, refletindo confusão até em coisas simples, como o que querem e o que não querem, o que gostam e o que não gostam.
No livro O Corpo Guarda Marcas, Van Der Kolk aponta que os problemas psicológicos ocorrem quando nossos sinais internos não funcionam, quando os mapas não nos conduzem para onde precisamos ir, quando estamos paralisados demais para nos mover, quando nossas ações não correspondem a nossas necessidades. Muitas dessas pessoas, carregam da infância dificuldade em levar em conta suas preferências e demandas internas, assim como discernir e avaliar situações, visto que não tiveram espaço para tal quando eram menores.
Sabemos que, no processo de criação de filhos, existem diversas coisas fundamentais que as crianças precisam aprender a fazer, estando elas com vontade ou não, como, terem uma alimentação adequada, cuidado com sono e higiene. Muitas das atividades rotineiras não cabem a elas decidir, pois faz parte de um crescimento natural e saudável que precisam internalizar com a repetição. Porém, em pequenas coisas diárias, é bom que os adultos estimulem a expressão de suas preferências, como, por exemplo, a escolha do sabor do suco, o brinquedo que desejam levar para a escola, se elas vão querer vestir uma pulseira ou um colar.
De maneira mais profunda, também é importante estimular o lado crítico delas, abrindo diálogos e estando dispostos a ouvir o que se passa em seu mundo interior. O fato de adultos imporem demasiadamente suas vontades, superprotegerem ou não abrirem espaço para escuta, deixando de acolher o desejo de um outro indivíduo, pode fazer com que este, com o passar do tempo, deixe até mesmo de se expressar (apatia), anule-se ou reprima sentimentos.
Essa repressão contínua sentida pela criança pode dificultar a relação com ela mesma, sua autopercepção e autoconhecimento, até mesmo a sua autonomia diante da vida. Pode traduzir também em dificuldade em estabelecer limites, alimentando continuamente o desejo de agradar ao outro. Ao contrário se faz na construção de uma relação saudável, em que cuidadores acolhem os sentimentos da criança e procuram entender o que ela está necessitando no momento e, a criança, por sua vez, corresponde a essa liderança amorosa. Ou seja, buscar conhecer a criança, verdadeiramente, nos conecta a ela.
Infelizmente, muitos adultos não se dispõem a isso, não conhecem seus próprios filhos, pois isso exige esforço, desgaste e dá trabalho. Pessoas controladoras ou possessivas não abrem espaço para o outro ser quem ele é, dominam as situações para que tudo saia de acordo com suas próprias expectativas. As crianças continuamente reprimidas se tornam passivas, com dificuldade de autocrítica e, em alguns casos, sujeitas a diversos tipos de abuso, pois se acostumaram a ss submeter e atender apenas o desejo de outros.
Crianças que não têm espaço para exercitar sua autonomia se tornam dóceis, muitas vezes não se rebelam, mas às custas de si mesmas, sentindo-se incapazes de enfrentar situações.
Essa insegurança de base pode futuramente afetar muitas áreas da vida, inclusive relacionamentos com amigos, familiares e parceiros íntimos, mantendo padrões de relações disfuncionais. Para evitarem conflitos ou não serem punidas, por meio de chantagem emocional, violência física ou abandono, muitas crianças se calam. Calam seus desejos, suas vontades, suas opiniões e suas dores. Calam a si mesmas.
Agora, a pergunta que não quer calar: Você está ouvindo a sua criança interior? Você, como adulto responsável, está verdadeiramente ouvindo as crianças ao seu redor?
Autora: Ingryd Abrão Diretora Operacional da ONG Núcleo Espiral, psicóloga clínica especialista em emergências e crises.