Brincadeiras agressivas × brincadeiras saudáveis – o contato corpo a corpo é usado para se vincular ou para violentar?
Você, com certeza, já viu ou ouviu algo sobre aquelas famigeradas “lutinhas de brincadeira”. Às vezes, acontece entre crianças, outras, com participações de adultos. O fato é que tais atitudes são incentivadas por uma masculinidade tóxica. E isso explica o porquê geralmente meninos/homens estão envolvidos nelas.
Mas até que ponto devemos aceitar essas “lutinhas” como algo normal? Quando um adulto está envolvido, quando podemos considerar uma agressão? É esse o debate que faremos neste texto.
Existem vários indicadores que ajudam a discernir se uma criança está sendo vítima de agressão, ou seja, de atos que extrapolam uma simples brincadeira.
Um dos sinais leva em conta o aspecto físico, que pode ser observado claramente por meio de traumas, hematomas, lesões, dores, distúrbios de sono e também doenças psicossomáticas, como: dores de cabeça, náusea, vômito e diarreia. Existem também os indicadores emocionais, que podem envolver medo, ansiedade, vergonha, repulsa, culpa, constrangimento e sensação de falta de valor.
Além desses, existem os indicadores interpessoais – que afetam a relação com os outros de forma geral, entre eles: medo da intimidade; confusão de papéis e redução das habilidades de comunicação. No aspecto cognitivo, é comum observar uma baixa concentração e atenção, dissociação e refúgio na fantasia.
Já no aspecto comportamental podem aparecer mudanças nos padrões de sono e alimentação, bem como nas brincadeiras agressivas entre pares.
A OMS define violência contra crianças e adolescentes levando em conta a relação de responsabilidade, confiança e poder que o adulto estabelece com aquele que é vulnerável (por este estar em uma fase diferente de desenvolvimento – cognitivo, físico e psíquico). Como um adulto pode “brincar de lutinha” com uma criança, que é muito mais fraca fisicamente, não têm as mesmas habilidades para o enfrentamento, nem condições emocionais para enfrentar uma ameaça real que é muito maior do que ela?
As “lutinhas”, a depender do contexto e fases de desenvolvimento dos indivíduos, podem trazer diferentes conotações e consequências. Muitas vezes pode ser confundida com a prática de uma luta esportiva, que passa por supervisão de um adulto e resulta em grandes ganhos e aprendizados para a criança. Sabemos que quando feita de forma saudável, entre pares da mesma idade e dentro de um contexto seguro, traz a importância das regras, limites pessoais e respeito.
Porém, há uma grande diferença entre a prática esportiva de uma luta e as “lutinhas” feitas sem propósito, sem um ambiente seguro, onde vale tudo. Estas podem resultar em grandes danos para os envolvidos, principalmente para as crianças, que ainda estão em formação e aprendendo a regular suas emoções. Já quando falamos de “lutinhas” entre adultos e crianças, temos que tomar o cuidado para analisar se essa aparente “brincadeira” vem como um disfarce para uma possível violência.
Da mesma forma que a criança violentada deve ser acolhida, o adulto necessita desse mesmo olhar e cuidado. O primeiro passo é a pessoa reconhecer que necessita de ajuda – por trás de um adulto ferido, pode existir uma criança que foi ferida. A dor dessa pessoa pode ser tão grande que, inconscientemente, ela reproduz esse ciclo, descontando a raiva que ficou retida em seus próprios filhos.
Se esta pessoa olhar para dentro de si, permitindo que suas dores venham a tona para poder ressignificar essas vivências, ou até mesmo procurar ajuda e reconhecer que não está dando conta sozinho (seja de um profissional ou alguém em que confiam), obterá o acolhimento e suporte que necessita para romper esse ciclo. Esse é um processo árduo e doloroso. Estes registros ficam marcados no corpo, não como memória consciente, mas registros inconscientes carregados de sintomas emocionais e físicos.
Ao olhar para seus traumas e perceber o que seu próprio corpo sinaliza, permitindo esse autocuidado e o cuidado que provém do outro, o adulto pode identificar essas marcas, cuidar de suas feridas e se abrir a novos tipos de relação. É importante ouvir o que essa pessoa diz, não reagir de modo que aumente a angústia dela, não culpabilizá-la, permitir que seu corpo manifeste o que precisa, acreditar no que está falando, conversar sobre o ocorrido, aceitar e acolher as expressões das emoções, como raiva, tristeza, choro, etc.
Dessa forma, o adulto poderá se conscientizar que as feridas que o marcaram geraram inúmeras consequências e traumas que não foram fáceis de lidar, o que jamais seria saudável para seus próprios filhos.
Autora: Ingryd Abrão Diretora Operacional da ONG Núcleo Espiral, psicóloga clínica especialista em emergências e crises.
Comments