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A força da palavra em uma sociedade comprometida contra o bullying

Atualizado: 4 de abr.

A origem ou o porquê dessa violência têm as mais variadas razões, desde um ambiente com uma cultura forte de perseguição à diferença até a “oportunidade” que o valentão encontra para se sentir “superior”


Foto: Freepik

O que é a palavra? Para um professor alfabetizando uma classe de primeiro ano do fundamental, teremos uma resposta. Para uma juíza proferindo sua sentença, podemos ter uma outra. Para uma poeta, tentando dar forma à ebulição de seus sentimentos, podemos ter uma terceira resposta e continua-se… a palavra parece assumir vários “rostos”, a depender de quem a usa e de como cada pessoa a interpreta. Me parece que a questão que une esses exemplos aponta para um certo “valor” que cada dizer possui. Vejam, que da palavra passamos agora para o dizer.

O que é dito extrapola a palavra em si, pois esta última só tem sentido quando a localizamos nos contextos culturais e linguísticos, como resultado desse jogo de experiências sociais. Um clássico exemplo acontece com o português europeu e o português brasileiro referente a palavra “rapariga”. Em Portugal estaremos falando de alguma jovem moça, já no Brasil rapariga torna-se um substantivo bastante ofensivo. O que faz parte do dito remete aos acordos criados (nem sempre democráticos) do que é válido ou não, do que é verdadeiro ou não, do que é normal e do que é loucura (FOUCAULT, 2014).

Partindo do foco na palavra (sempre situada numa cultura) e nos seus efeitos, ela é histórica. Isto quer dizer que, nossos gostos serão, em alguma medida, baseados em nossas experiências e no lugar que nos foi permitido habitar dentro da sociedade. A condição econômica, a região que mora, o gênero, entre tantas outras variantes, vão produzir determinados “gostos”, possuindo como parâmetro certas noções da norma ou diferença.

Agora, o que seria bullying e como exatamente essa discussão da construção social enrola-se com esse tema?

Sobre o bullying, esta expressão, que tomamos emprestado do inglês, refere-se a práticas de perseguição contínua contra uma outra pessoa. Normalmente quem pratica o bullying “escolhe” suas vítimas com base na força que consegue exercer nesse outro. Sendo assim, o que mais interessa ao agressor é “afetar” a vítima de algum modo. A origem ou o porquê dessa violência serão das mais variadas, desde um ambiente com uma cultura forte de perseguição à diferença, como certa “oportunidade” que o valentão  encontra, muitas vezes orientado pelas próprias questões que este carrega consigo. O que parece ser frequente entre as origens e os porquês, é justamente a questão da diferença. É o corpo diferente que destaca-se na sociedade da norma, peso, etnia, sexualidade, identidades de gênero são alguns aspectos da diferença que podem fazer emergir o bullying. E por que chamamos de diferença? Em uma sociedade centrada no homem, no corpo branco e “saudável” (que aparenta jovialidade e vigor) quanto mais distante disso, mais um corpo será marcado como diferente.

Antes de prosseguirmos, é importante distinguir preconceito, bullying e discriminação. Embora os termos sejam próximos, cada um tem sua especificidade. O preconceito é entendido como uma certa concepção que a pessoa cria, sem o conhecimento prévio ou aprofundado sobre determinado assunto; bullying, como dito anteriormente, é uma perseguição sistemática de uma pessoa a um alvo específico; a discriminação por sua vez, refere-se a inferiorização de uma pessoa que foi marcada pela diferença; disto surge o racismo, o machismo, a xenofobia, LGBTQfobia, entre outros.

Tomemos a questão da palavra outra vez, qual a ligação que podemos fazer dela com o bullying? O bullying se apresenta com muitas caras, por exemplo, por meio da violência física, que é uma das mais fáceis de se perceber. Também pode aparecer como “zoação”, podendo ser entedida como uma “brincadeira”, sendo mais dissimulada, por vezes sem deixar evidências. Com isso, chama atenção a força que a palavra possui como instrumento do bullying, pois esta, por estar nesse jogo do dito e da norma, penso que, reflete nossa construção sobre as práticas sociais de discriminação, contra as diferenças.

As guerras, as batalhas, as brigas, as disputas antes de qualquer coisa, acontecem por meio de palavras. Elas têm uma capacidade destrutiva imensa, visto que seus efeitos podem ser imensuráveis. Uma ferida na pele pode sarar facilmente com ajuda de uma pomada, por exemplo, mas a palavra pode machucar por toda uma vida.

Por isso, é importante pensar no bullying a partir da palavra, pois ela guarda em si a possibilidade não só de posssuir grande mal, como grande bem. São interessantes os saberes do povo Yorùbá. Essa cultura entende a palavra falada como detentora de grande capacidade que conduz o acontecimento (MANAYA, 2013). Interpreta-se isso como certa potência de se constituir realidades. Sendo esse povo uma cultura oralizada (diferente da nossa, que centrou seus saberes na escrita), a palavra tem um lugar de grande importância que merece cuidado e atenção. Trazendo essa perspectiva dos Yorùbá para nosso contexto, se proferimos injúrias ou maldizemos alguém, poderia ser uma negação da possibilidade do outro de ser um humano, porque, essa dominação produz uma descaracterização desse outro, ou seja, constrói-se uma realidade desse outro não feita por ele mesmo. Tornando-o tal como um objeto que vive para cumprir o sofrimento como um dominado nesta relação estabelecida por meio do bullying.

Para quebrar esse ciclo, seria urgente entender como se dá essa configuração que permite o bullying surgir. Localizando esse tipo de perseguição nas condições sócio-culturais, temos a oportunidade de olhar para a questão mais atentamente. Por isso, devemos superar a tentativa de encontrar um culpado individualmente, pois, o bullying é resultado direto do modo que lidamos com a diferença como grupo; é um efeito social e coletivo. Evidentemente que as responsabilizações devem existir, mas não devem ser o único caminho para combater as práticas de bullying, porque é responsabilidade de todas e todos enfrentarmos essa dinâmica nociva.

Apontando para uma reapropriação da palavra em nossa cultura, ela não existe apenas para dar significados e nomes, ela é, antes de mais nada, uma das pontes imateriais que criamos, que talvez permita acessar existências externas a nossa singularidade. Como cada um de nós nasce “preso” dentro de seu corpo, as linguagens, aqui especificamente a palavra, guardam em si uma ingênua esperança de superar a nossa solidão existencial, mas que talvez seja este ato de esperançar que nos permita um olhar generoso para o outro e quem sabe para o outro diferente.


Autor: Nelbert Araujo Pedagogo e facilitador no Núcleo Espiral.


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