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A promoção da resiliência na rede socioassistencial do Campo Limpo

Atualizado: 3 de fev. de 2023

Uma análise qualitativa do Projeto Recriar em 2016

 

Escrito por Katyanne Segala,

facilitadora dos programas Proev e Retocare do Núcleo Espiral

O Núcleo Espiral, organização social sem fins lucrativos fundada em 2008, busca uma proposta de intervenção que foca na pesquisa, assistência e prevenção da violência contra crianças e adolescentes, onde o público vítima de violência é olhado dentro de seu contexto social, abarcando as suas possibilidades. Comfort et al (2015, p.12) explicam que o Espiral “realiza seus trabalhos estimulando crianças e adolescentes a buscarem recursos que as direcionem a caminhos viáveis e saudáveis para as suas vidas, compreendendo as suas experiências negativas e vivências traumáticas sob a ótica do conceito da resiliência”. Desde sua fundação, o Núcleo Espiral procura estimular o desenvolvimento de novas formas de relacionamento com o mundo, visando a redução dos danos provocados por vivências negativas originadas nas mais variadas exposições a situações de violência e, acima de tudo, oferecendo possibilidades para que o ciclo da violência seja rompido.


Conforme essa concepção, propõe-se o fortalecimento da resiliência e consequente empoderamento enquanto cidadãos com direitos. O conceito de resiliência, termo emprestado pela Física e Engenharia à Psicologia na década de 60, encontra-se, ainda hoje, em construção. No início da década de 70, costumava ser empregado para designar a capacidade de o ser humano resistir às adversidades que a vida lhe impõe, estando muito ligado à resistência. Atualmente, conforme apontado por Sauaia (2003, p.8), resiliência significa “a capacidade de o indivíduo manter um funcionamento considerado adaptado, mesmo diante de adversidades, ou sérias ameaças ao desenvolvimento”.

De acordo com Junqueira e Deslandes (2003 apud COMFORT et al, 2015), resiliência é um fenômeno que decorre a partir de um conjunto de processos sociais e intrapsíquicos em função de fatores benéficos pessoais, familiares, sociais e culturais. Agnst (2009, p.255) afirma que

a resiliência não pode ser considerada um escudo protetor, que fará com que nenhum problema atinja essa pessoa, a tornando rígida e resistente a todas as adversidades. Não existe uma pessoa que É resiliente, mas sim a que ESTÁ resiliente. Esse é um processo dinâmico, e as influências do ambiente e do indivíduo relacionam-se de maneira recíproca, fazendo com que o indivíduo identifique qual a melhor atitude a ser tomada em determinado contexto.

Em contraponto, Araújo (2010 apud COMFORT et al, 2015) discorre que a resiliência é considerada um potencial inato ao ser humano, presente em toda a sua evolução.

Somente há alguns anos a resiliência foi reconhecida pela Saúde Pública como um conceito associado à prevenção, promoção da saúde, bem-estar e qualidade de vida, passando a fazer parte de muitos programas de prevenção à violência (PESCE e ASSIS, 2005).


A resiliência enquanto prática de intervenção preventiva perpassa pelos conceitos de: fator de risco e fator de proteção. Os fatores de risco são variáveis que aumentam a probabilidade de desadaptação do indivíduo frente a uma situação de risco, potencializando a vulnerabilidade, como por exemplo: estar inserido em uma família desestruturada, ausência de apoio na rede social, autoimagem negativa, ter uma condição física desfavorável, entre outros. Importante destacar que os fatores de risco não devem ser considerados uma sentença na qual se o jovem está em situação de rua, por exemplo, ele não seria resiliente. Os fatores de proteção são as variáveis que transformam positivamente a reação de uma pessoa frente a alguma situação de risco e que parecem reverter circunstâncias potencialmente negativas. São exemplos de fatores de proteção: situação familiar satisfatória, autoimagem positiva, rede social abrangente, entre outros. Os fatores de proteção podem reduzir o impacto dos fatores de risco, propiciando identidades fortalecidas, mais conscientes de suas capacidades e limitações, dotadas de um senso de coletividade, competência social, autonomia e com expectativas positivas sobre seus futuros (ANGST, 2009).


Hutz et al (2002) comentam que os fatores protetivos são comumente vistos como a contraparte positiva dos fatores de risco, tanto quanto às características individuais como as ambientais. Se, por um lado, a hostilidade e a negligência parental podem contribuir para a incidência de distúrbios de conduta e delinquência juvenil, as práticas efetivas, bom funcionamento familiar, vínculo afetivo, apoio e monitoramento parental são apresentados como fatores de proteção que reduzem a probabilidade entre os jovens do engajamento em comportamentos delinquentes.


Pesce e Assis (2005) afirmam que devido a infância e a adolescência serem consideradas as fases do desenvolvimento em que a personalidade está sendo constituída, intervenções nestes estágios de vida tornam-se cruciais e efetivas. Essa ideia já havia sido levantada por Dekovik (1999, apud HUTZ et al, 2002, p.171), ao explicar que “ao mesmo tempo em que a adolescência pode ser uma fase de grande vulnerabilidade devido às intensas mudanças que nela acontecem, ela é uma fase de grande plasticidade e representa uma oportunidade especial para intervenções que promovam trajetórias saudáveis de desenvolvimento”.

Portanto, a resiliência representa um enorme desafio e tem um papel essencial para os profissionais que trabalham com jovens em situação de risco, necessitando maior atenção e enfoque na promoção da saúde e prevenção da violência.

Com o intuito de promover a resiliência, um dos pilares mais importantes do Núcleo Espiral, o Retocare, um dos programas da ONG, oferece oficinas socioeducativas que contam com diversas atividades lúdicas às crianças e adolescentes das instituições com as quais trabalhamos, sejam elas SAICAs, (serviços de acolhimento), CCAs (Instituições que atuam no contra-turno escolar) ou MSEs (medidas socioeducativas).


Em 2016 foram atendidos ao todo 75 crianças e adolescentes em quatro instituições vinculadas ao Projeto Recriar – em parceria com a entidade alemã Kindernot Hilfe – (CCA Vila Andrade, MSE Vila Andrade, CCA São José e CCA Quadrangular). Foram realizados 11 encontros com oficinas socioeducativas por semestre, sendo que a cada semestre, novos participantes compuseram os grupos, que contavam com cerca 12 crianças e adolescentes cada um. Para avaliar a eficácia das atividades realizadas com os grupos, foram aplicados dois questionários, sendo um sobre cuidado (avaliando o quanto a criança/adolescente é cuidada ou não no contexto familiar) e outro sobre violência (avaliando o que a criança/adolescente entende por violência e o quanto esta faz parte de sua vida), no primeiro e no último encontro de cada semestre com as crianças e adolescentes.


No primeiro semestre, os encontros para a aplicação do questionário inicial ocorreram durante o mês de março de 2016, nas instituições CCA Vila Andrade, Projeto Vida Quadrangular, MSE Vila Andrade e CCA São José em 27 sujeitos (crianças e adolescentes). Os encontros para a realização do questionário final ocorreram durante o mês de junho de 2016 nas mesmas instituições, porém apenas 19 sujeitos responderam.


Já no segundo semestre, os encontros para a realização do questionário inicial ocorreram durante o mês de agosto de 2016, nas instituições CCA Vila Andrade, MSE Vila Andrade e CCA São José em 17 sujeitos (crianças e adolescentes). Os encontros para a realização do questionário final ocorreram durante o mês de novembro de 2016 nas instituições nas instituições CCA Vila Andrade, MSE Vila Andrade e CCA São José, sendo que 23 sujeitos responderam.

Dentre os dados analisados, pode-se perceber que a relação entre criança e pai melhorou, pois, a porcentagem de pais que ficavam com as crianças durante a noite aumentou de 11% para 23%, e a porcentagem de pais que colocam a criança para dormir foi de 7% para 26%. Além do Retocare, há também o programa Apoiar, que tem como objetivo capacitar cuidadores de instituições para crianças e adolescentes, além de oferecer oficinas para os familiares dos jovens atendidos por estas instituições.


Podemos inferir que o trabalho do Núcleo Espiral com crianças e com famílias pode ter gerado uma reflexão acerca da importância da família e da qualidade do tempo que eles passam juntos. No entanto, apesar dessa melhora na relação entre pai e filho, a porcentagem de mães que cuidam dos filhos (colocar para dormir, ficar com a criança durante a noite e cuidar quando a criança está doente) ainda é maior, com 70% em ambos os questionários, tornando possível compreender que a mãe ainda está muito mais presente nos momentos de cuidado do que o pai.

Em relação ao tema violência, as crianças foram convidadas a responder se já presenciaram algum tipo de violência (foram apresentadas imagens que representavam diversos tipos de violência). O número de crianças e adolescentes que já presenciou algum tipo de violência aumentou de 78% para 83%. Esse aumento pode ser devido ao vínculo com os facilitadores, que corroborou para que as crianças pudessem se sentir mais confortáveis para falar sobre o assunto. Além disso, tiveram a oportunidade de compreender e identificar alguns tipos de violência durante as atividades, que não apenas a violência física, e que antes talvez não considerassem atos de violência.


Comfort et al (2015) reforçam a importância do preparo dos profissionais que atuam com esse público, salientando que “O olhar sensibilizado destes profissionais é imprescindível na transformação das crianças vítimas de violência, já que são eles que poderão oferecer, cotidianamente, o suporte necessário para acreditarem em si e em suas possibilidades”. (COMFORT et al, 2015, p.28). As autoras continuam dizendo que

Os mais variados grupos de crianças e adolescentes já realizados pela equipe da instituição indicam que, com profissionais informados, preparados e atentos, é possível traçar novos caminhos na vida de quem se encontra, aparentemente, sem saída. Apesar dos eventos traumáticos e das vivências negativas, a experiência positiva de novas situações pode oferecer ao público vítima de violência a oportunidade de saírem transformados. Para tanto, a linguagem corporal, que auxilia o acesso aos recursos físicos e instintivos enraizados e inacessíveis pela fala, bem como a linguagem simbólica, que ajuda na ressignificação de memórias físicas e/ou psíquicas são fundamentais. (COMFORT et al, 2015, p.28)

A importância de profissionais bem preparados também havia sido apontada por Lancelotti (2001), que destaca o oferecimento de perspectivas futuras e o vínculo como ferramentas fundamentais àqueles que atuam com jovens em conflito com a lei, vítimas ou agentes de violência.

Sem vínculo é impossível educar, é impossível construir uma relação educativa, significativa, onde o encontro se faz vida. (…) O estabelecimento de vínculo é um processo técnico, misterioso e mágico, é uma predisposição, uma escolha, um despojamento, capacidade de ouvir, de sentir com o outro, vê-lo como pessoa e não como rótulo, é um estilo de vida, exigente e renovador. (LANCELOTTI, 2001, p.261).

Outro ponto a se destacar foi em relação a capacidade de procurar ajuda em caso de violência, que aumentou de 76% para 87%. Pode-se considerar que esse número aumentou também devido às atividades em que foram trabalhados temas como respeito e segurança, com o objetivo de romper o ciclo da violência, além de possivelmente estarem mais cientes de seus direitos e serviços oferecidos na comunidade.


Machado et al (2011) consideram que a conscientização de que a violência é um problema social, além de necessária, pressupõe a responsabilização coletiva e a sensibilização da sociedade civil a respeito do cuidado para com a família que violenta e com os profissionais que trabalham com esse público de forma a garantir que as intervenções sejam baseadas no compromisso e dedicação, em oposição ao comportamento indiferente e negligente. Os autores acrescentam que o método proposto pelo Núcleo Espiral tem a intenção de “minimizar as condições precárias ou inadequadas que caracterizam os lares e comunidades desses jovens e de capacitar, tanto os profissionais das instituições (…), a fim de que não perpetuem o ciclo da violência, como os pais e responsáveis das crianças e todos aqueles envolvidos em seu cotidiano” (MACHADO et al, 2011, p.46). Os dados demonstraram que o Núcleo Espiral tem conseguindo aplicar a teoria nas atividades, promovendo a prevenção da violência doméstica e o fortalecimento da resiliência, falando de um assunto tão essencial e denso, mas de forma lúdica e vivencial.

Referências Bibliográficas

ANGST, R. Psicologia e resiliência: Uma revisão de literatura. Pontifícia Universidade Católica – PR, 2009. file:///C:/Users/Usuario/Downloads/pa-3252%20(2).pdf acessado em 08.08.2017.


COMFORT, A.P.M.; PARDUCCI, C.; QUINLAN, C.F.; MATOS, M.C.; ALEXOPOULOS, R. Resiliência e Trauma: experiências de um trabalho com crianças e adolescentes na abordagem analítica. In: AMORIM, S.; NEUMANN, M.M. (Org). A Violência na Contemporaneidade: o olhar da psicologia junguiana. São Paulo: Editora CRV, 2015.


HUTZ, C.S. (Org.) Situações de Risco e Vulnerabilidade na Infância e na Adolescência: Aspectos Teóricos e Estratégias de Intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.


LANCELOTTI, J. Construindo esperança em tempo de violência. In: LEVISKY, D.L. (Org.) Adolescência e violência: ações comunitárias na prevenção “Conhecendo, articulando, integrando e multiplicando”. São Paulo: Casa do Psicólogo/Hebraica, 2001.


MACHADO, A. P. T.; FONDELLO, L. A.; SILVA, D. C. Jung, Corpo e Resiliência: Uma integração possível na prevenção da violência. Revista Jung e Corpo, v. 11, p. 35-47, 2011.


PESCE, R.P.; ASSIS, S.G. Resiliência na infância e adolescência: pistas para a promoção da saúde. In: SILVA, H.O.; SILVA, J.S. (Org) Análise da Violência contra a criança e o adolescente segundo o ciclo de vida no Brasil. Global Editora, 2005.


SAUAIA, N.M.L. Psicoterapia de orientação junguiana com foco corporal para grupos de crianças vítimas de violência: promovendo habilidades de resiliência. Dissertação de Mestrado Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2003.

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