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Desmistificando a violência contra crianças e adolescentes

Escrito por Thelma Armidoro Velasco, facilitadora do programa Apoiar

(Texto adaptado da matéria publicada na revista Psique edição 127 ano 2016)

Falar sobre violência sempre é uma tarefa difícil devido à amplitude deste fenômeno. Todas as vezes que olharmos para uma situação de violência de maneira isolada e restrita, corremos o risco de tirarmos conclusões equivocadas. E não é diferente quando falamos de violência contra crianças e adolescentes. Portanto, é importante abordar alguns aspectos sobre o assunto para ampliarmos nossa percepção, estimulando a reflexão e novos olhares sobre o tema.

São diversos os tipos de violência os quais a população enfrenta e isto inclui o público infanto-juvenil. A violência estrutural, por exemplo, que os deixa vulneráveis e prejudica seu desenvolvimento e crescimento, pode ser percebida nas situações de pobreza, na condição educacional precária, nos meios de comunicação que banalizam as agressões e exploram conteúdos impróprios para a fase de desenvolvimento das crianças, assim como a exploração do trabalho infantil que após 10 anos em queda teve um aumento de aproximadamente 10% na faixa etária entre 5 e 13 anos no ano de 2014, conforme pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE. Outro tipo de violência contra crianças e adolescentes é a violência intrafamiliar e é sobre ela que falaremos a seguir.

A Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes – VDCCA é configurada por atos ou omissões praticados por um adulto – não necessariamente os pais – contra uma criança ou adolescente. Esta atitude implica em uma violação do dever de proteção e amparo entre o responsável e a criança ou adolescente, quando deveria existir entre eles um laço de confiança e relação de cuidado. Além de transmitir mensagens contraditórias, como “estou te punindo para seu próprio bem”; “dói mais em mim do que em você”; “faço isso porque te amo”, estamos possibilitando um problema futuro maior do que nos damos conta, pois relacionamos o amor e afeto à dor e punição.

Você saberia responder quais ações são consideradas violência contra crianças e adolescentes? A pergunta parece fácil de responder quando pensamos nos extremos, mas vamos ver se realmente é:

  1. Violência física: aquela que agride o corpo e inflige dor como forma de punição/correção, deixando marcas momentâneas ou permanentes.

  2. Violência psicológica: conhecida também como tortura psicológica é aquela que não fere o corpo físico, porém deixa marcas na alma. São palavras e ações que colocam a criança ou adolescente em posição de inferioridade por meio de comparações, humilhações, ameaças, privação de afeto, e que influenciam negativamente na construção da autoimagem.

    1. Alienação parental: Quando um dos familiares tenta destruir ou impedir a relação da criança ou adolescente com o outro genitor e sua família. Este passa a tratar os filhos como objetos, utilizando-os como instrumento para agredir, rompendo os laços afetivos e criando sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro membro familiar.

  3. Negligência: pode ser por ação ou omissão deixando a criança ou adolescente em situação vulnerável podendo acarretar danos no desenvolvimento físico e cognitivo destes.

    1. Abandono: pode ser desde a ausência temporária dos responsáveis, deixando a criança ou adolescente vulnerável a situações de risco, até o abandono total, quando a criança ou adolescente é deixado na escola, na rua, etc., e não há um retorno dos responsáveis, deixando-os permanentemente desamparados.

    2. Medicalização da infância: quando comportamentos naturais da infância/adolescência ou comportamentos que destoem dos socialmente esperados – provenientes de personalidade, conflitos, desajustes sociais ou familiares, etc. – são classificados como patológicos e medicados. Esta ação pode ocasionar danos ao desenvolvimento social, emocional e cognitivo.

  4. Violência sexual: toda situação em que o adulto tem a intenção de obter prazer utilizando-se do corpo ou da imagem de crianças e/ou adolescentes. Pode ocorrer ou não contato físico e ser com ou sem uso de agressividade.

  5. Violência fatal: quando os atos ou omissões do responsável são capazes de causar danos físicos, psicológicos e/ou sexuais severos culminando em morte.

O escritor Bertolt Brecht fez a seguinte citação: “E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou”. Já é tempo de percebermos que algo não está dando certo em nossa sociedade e principalmente, algo precisa ser mudado. Enfatizar para as novas gerações a prática do afeto, vínculo positivo, apego seguro, confiança, respeito e desenvolvimento da empatia será de extrema necessidade para, a longo prazo, alterarmos a cultura de violência em que vivemos.

Quantas vezes você já ouviu ou até mesmo disse “meus pais eram muito duros/bravos, mas sobrevivi, graças a isto hoje sou uma pessoa de bem”? Agora reflita: quais são as situações as quais precisamos sobreviver? Por exemplo enchente, terremoto, assalto, doença… Em sua unanimidade são situações ruins, que exigem de nós um grande nível de resiliência para atenuar as consequências do fato ocorrido. Será mesmo esta a lembrança que queremos que nossos filhos tenham de nós? Que sobrevivam APESAR de nós?

É preciso muito equilíbrio para reconhecer que praticamos atos violentos mais do que pensamos praticar e que, em todos os casos, muito mais do que uma necessidade ou dever de “corrigir” o que se julga errado, esta atitude diz respeito a nossa falta de capacidade para lidar com as adversidades do cotidiano.

“Agora com esta Lei da Palmada não posso mais educar meu filho”. Será?

Para abordarmos este tema é preciso primeiramente compreender que historicamente as crianças e adolescentes eram tratados como objetos e não como sujeitos de direitos. Este fato parece estar tão, supostamente, distante de nossa realidade que fica até difícil concebermos esta possibilidade parecendo até mesmo exagero. Porém a primeira organização dedicada a combater maus-tratos na infância foi criada em 1894 em Nova York, quando uma criança de 9 anos de idade foi severamente agredida pelos pais e o promotor responsável pelo caso precisou solicitar ajuda a “Sociedade de Prevenção a Crueldade aos Animais” alegando que a menina pertencia ao “reino animal” e por isso se encaixaria na lei de proteção aos animais.

Isto ocorreu, pois, crianças e adolescentes não eram vistos como pessoas e não havia leis especificas de proteção a eles. A ação deste promotor culminou na retirada desta criança de seu lar e a criação da Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Crianças de Nova York (NYSPCC). Embora o Brasil tenha sido um dos primeiros países a adotar os princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, foi somente em 13 de julho de 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que esta parcela da população foi percebida não mais como propriedade dos pais mais sim como sujeitos de direitos.

Uma das últimas alterações no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente gerou grande polêmica entre pais e educadores. A Lei nº 13.010 de 26 de Junho de 2014 conhecida como Lei da Palmada ou Lei Menino Bernardo, estabelece o direito de crianças e adolescentes de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. É indiscutível que a autoridade empregada de forma construtiva, é necessária para o estabelecimento de limites e contenção dos impulsos e proteção contra os estímulos externos, servindo de base para o processo de formação do individuo.

Crianças e adolescentes anseiam por limites claros e coesos para organização de seu mundo intrapsíquico. Porém, por não reconhecer formas não violentas como meio educacional são feitas interpretações errôneas sobre o estatuto reforçando ainda mais a ilusão de que os pais não podem mais formar e impor limites aos seus filhos. Isto é compreensível, pois ao impor uma lei como esta, é tirado algo dos pais, responsáveis e educadores, mas não é dado nada em troca que substitua os atos violentos. Daí a importância de discutirmos disciplina positiva através da comunicação não violenta.

O educar precisa ser com amor, respeito e equilíbrio emocional. É necessário que os adultos rompam com seus padrões educacionais e percebam suas limitações. Somente assim poderão desenvolver a capacidade de se envolver e acalentar. O desenvolvimento requer a presença destes dois princípios, pois a criança precisa de um adulto amoroso que reconheça e valide suas necessidades e que cuide e ofereça o suporte necessário dado por limites e regras claras para que se tornem adultos psiquicamente saudáveis.

“Ficamos perigosos quando não temos consciência de nossa responsabilidade por nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos.” MARSHALL B. ROSENBERG

Referências:

BYINGTON, C. A. B. A construção amorosa do saber: O fundamento e a finalidade da Pedagogia Simbólica Junguiana. São Paulo: Linear, 2011.

AZEVEDO, M. A. e GUERRA, V. N. de A.  Violência Doméstica na Infância e Adolescência: uma nova Cultura de Prevenção. São Paulo: Pleiade, 2011.

MINAYO, M. C. de S., Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Rev. Bras. Saúde Mater. Infant. [online]. 2001, vol.1, n.2, pp. 91-102. < http://dx.doi.org/10.1590/S1519-38292001000200002>

KRYNSKI, Stanislau et al. (org). A criança maltratada. São Paulo: Almed, 1985.

SENA, L. M. e MORTENSEN, A.C.K., Educar sem violência: criando filhos sem palmadas, Campinas – São Paulo, Papirus 7 Mares, 2014.

SANTOS, B. R. dos e HIPPOLITO, Rita., Guia Escolar: Métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes -Brasília: Secretaria Espacial dos Direitos Humanos e ministério da Educação, 2004, 163p.

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